"O proletariado poderia propor-se o trucidamento da classe dirigente; um judeu, um negro fanático poderiam sonhar com possuir o segredo da bomba atômica e constituir uma humanidade inteiramente judaica ou inteiramente negra: mas mesmo em sonho a mulher não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana."
Simone de Beauvoir, O Segundo Sexo
Quando o controverso SCUM Manifesto escrito por Valerie Solanas foi publicado em 1968, poderia se dizer que uma caixa de pandora foi aberta. Muito se discutiu e se escreveu sobre ele, seja rejeitando-o como "delírios exagerados de uma maluca odiadora de homens" ou reconhecendo que a análise de Valerie tem contribuído bastante para a tomada de consciência do feminismo (e também para a consciência das paranóias e neuroses masculinas, diga-se de passagem). Com uma linguagem sarcástica e de divertida engenhosidade, o manifesto possui uma crítica precisa que causa impacto e gera questionamentos quanto aos problemas do patriarcado, suas inversões e dualidades, que indicam o homem como positivo e neutro e a mulher como seu negativo. Contudo, o livro não encontrou um lugar próprio, e mesmo dentro do feminismo tem sido muitas vezes desprestigiado e tratado com embaraço. De fato, num tempo em que o empoderamento feminino significa a "liberdade" de se "valorizar" como objeto sexual, em que todas nós amamos e respeitamos os homens e estamos felizes com a participação "igualitária" na escravidão assalariada, entre roupas e pratos a lavar, refeições a preparar e marido e filhos a criar, o panfleto de Solanas se faz mais necessário do que nunca. Num mundo ainda baseado na humilhação, subordinação e opressão diárias da maior parte da população e onde o feminismo enfrenta os mais diversos contra-ataques, desde ofensivas masculinistas a reações ideológicas contrárias e má vontade política (com certeza você já ouviu que "a liberdade das mulheres já foi conquistada" e que "o feminismo não tem mais significado"), toda expressão de insurreição feminina é indispensável. Deixo aqui alguns excertos do manifesto, para que ele possa falar por si mesmo.
SCUM Manifesto
por Valerie Solanas
Sendo a vida nesta sociedade, na melhor das hipóteses, um tédio absoluto, e sendo que nenhum aspecto desta sociedade tem qualquer significado para o sexo feminino, às mulheres responsáveis, conscientes, em busca de emoções, só resta derrubar o governo, destruir o sistema monetário, instituir a automação completa e eliminar o sexo masculino.
A reprodução é hoje tecnicamente possível sem necessidade de recorrer ao macho (ou, neste ponto, à fêmea) e é possível reproduzir apenas fêmeas. Isto deve começar a ser feito desde já. Reter o sexo masculino não tem nem mesmo o propósito duvidoso da reprodução. O macho é um erro biológico: o gene Y (masculino) é um gene X (feminino) incompleto, isto é, dotado de uma série incompleta de cromossomos. Por outras palavras: o macho é uma fêmea incompleta, um aborto ambulante, falhado na fase do gene. Ser macho significa ser deficiente, emocionalmente limitado; a masculinidade é uma doença e os homens são seres emocionalmente estropiados.
O homem é um ser egocêntrico, fechado em si próprio, incapaz de desenvolver afinidades, de se identificar com os outros, de amar, de sentir amizade, afeição ou ternura. É uma célula completamente isolada, incapaz de se relacionar. As suas reações são inteiramente viscerais e não cerebrais; a inteligência é um mero instrumento ao serviço dos seus impulsos e desejos; é incapaz de paixão mental, interação mental, não consegue relacionar-se com nada que esteja além das próprias sensações físicas. É um ser amorfo, semivivo, sem capacidade para dar ou receber prazer ou felicidade: incapaz daquela absorção nos outros que torna uma pessoa interessante, fica reduzido a uma nódoa, um perfeito chato. O homem está encurralado numa dimensão a meio caminho entre seres humanos e os macacos e numa situação bem pior que estes, porque, ao contrário dos macacos, o homem é capaz duma grande quantidade de sentimentos negativos: ódio, inveja, desprezo, repugnância, culpa, vergonha, suspeita; além disso tem consciência do que é e do que não é.
Apesar de totalmente físico, até sexualmente falando o homem é incompetente. Mesmo pressupondo a proficiência mecânica, que poucos homens têm, ele é, em primeiro lugar e acima de tudo, incapaz de se agarrar e gozar com entusiasmo e sensualidade; em vez disso é roído pela culpa, vergonha, medo e insegurança, sentimentos enraizados na natureza masculina e que a melhor educação pode apenas minimizar; depois, a sensação física que ele consegue atingir está perto do nada; por fim, em vez de comunicar com a companheira, fica obcecado com o que está a fazer, tentando fazer um bom trabalho de perfuração que lhe permita obter uma nota boa nesse desempenho. Chamar animal a um homem é elogiá-lo; ele é uma máquina, um vibrador com pernas. É dito frequentemente que os homens usam as mulheres. Usam-nas para quê? Certamente não é para o prazer.
Roído pela culpa, vergonha, medo, insegurança, e conseguindo, se tiver sorte, uma fraca sensação física, o macho está, apesar de tudo, obcecado com o fornicaço; nada em esgotos, atravessa quilômetros de vômito, enterrado até o pescoço, se pensar que do outro lado há uma vagina acolhedora à sua espera. É capaz de foder uma mulher que despreze, ou até uma bruxa velha e desdentada, e ainda por cima pagará por isso. E por quê? Para aliviar a tensão física não é resposta, para isso a masturbação é suficiente; e também não é para satisfazer o ego; isso não explica que foda cadáveres e bebês.
Todo ele egocêntrico, incapaz de se relacionar, de criar afinidades e de se identificar com os outros, senhor de uma vasta e difusa sexualidade, o homem é psiquicamente passivo. Ele, que odeia sua própria passividade, projeta-a nas mulheres, define-se como ativo e tenta demonstrá-lo (provar que é homem). Foder é seu principal meio para conseguir ("Eu sou bom, tenho uma grande pica, como uma garota gostosa"). Na tentativa de demonstração de algo que é falso, ele tem de tentar repetidamente, uma vez, outra vez e mais outra. Foder torna-se então uma tentativa compulsiva e desesperada para provar que não é passivo, que não é uma mulher: mas acontece que ele é passivo e que interiormente deseja ser mulher.
Sendo ele uma fêmea incompleta, o macho passa a vida a tentar completar-se, tornar-se fêmea. Para conseguir anda sempre à procura de mulheres, confraternizando, tentando viver através delas, fundir-se nelas; proclama como suas as características femininas: força emocional, independência, energia, dinamismo, poder de decisão, objetividade, firmeza, coragem, integridade, vitalidade, intensidade, profundidade de caráter, alegria, e projeta nas mulheres todos os traços característicos dos homens: vaidade, futilidade, trivialidade, fraqueza, etc. Deve ser dito, no entanto, que o homem possui uma área de evidente superioridade sobre a mulher – a de relações públicas. (Ele realizou um trabalho brilhante convencendo milhões de mulheres de que os homens são mulheres e as mulheres são homens). Os homens afirmam que as mulheres encontram satisfação através da maternidade e da sexualidade, mas isso reflete o que ELES achariam satisfatório se fossem mulheres.
As mulheres, em outras palavras, não têm inveja do pênis; os homens é que têm inveja da vagina. Quando o macho aceita sua passividade, define a si mesmo como mulher (os machos, assim como as fêmeas, pensam que os homens são mulheres e as mulheres são homens), e torna-se um travesti – ele perde o desejo de foder (ou de fazer qualquer outra coisa, neste ponto; ele se satisfaz como uma drag queen) e faz com que lhe cortem o pênis. Ele então adquire um sentimento sexual contínuo e difuso de "ser mulher". Foder é, para um homem, uma defesa contra seu desejo de ser mulher. O sexo é em si mesmo uma sublimação.
O macho, devido à obsessão que o atormenta por não ter nascido fêmea, agravada pela incapacidade de comunicar e de sentir profundamente, tornou-se responsável por:
Guerra – Um meio de afirmar a sua superioridade mediante a destruição do maior complexo de inferioridade que o mina desde a infância: ser sexualmente mais limitado que as mulheres.
Boas maneiras – Dominado por um sentimento de animalidade, envergonhado, incapaz de se exprimir e de esconder dos outros o seu próprio egocentrismo total, o macho inventou o ódio social pelas maneiras espontâneas e naturais, e estabeleceu um código de comportamento mediante o qual os seres humanos já não podem comunicar naturalmente.
Dinheiro, matrimônio, prostituição, trabalho, prevenção da automatização – Para tornar a mulher uma escrava completa, o homem inventou o dinheiro, o matrimônio e a prostituição, que a envilecem, tornando-a dependente dele. Além disso, não há qualquer razão para que os seres humanos trabalhem e utilizem o dinheiro. Todos os empregos não criativos (praticamente todos os empregos existentes) podiam ter sido automatizados há já muito tempo, e não o foram. Numa sociedade sem dinheiro todas poderiam alcançar aquilo que desejam sem qualquer esforço.
Paternidade e doenças mentais (medo, velhacaria, timidez, humildade, insegurança, passividade) – A mãe deseja o bem dos filhos; o pai deseja que os filhos cresçam no respeito pelas suas conquistas sociais. Por isso, educa-os para serem respeitosos, dignos, banais, peados, falhos de imaginação, tal como ele próprio, inculcando-lhes o amor pelo dinheiro.
Supressão da individualidade, animalismo, funcionalização – O pai exerce uma verdadeira tirania sobre o desenvolvimento dos filhos, os quais tenderiam todos a participar na vida da mãe, e, por isso, a serem por ela influenciados das maneiras mais diversas. Ele obriga-os a respeitarem aquilo que ele respeita, o que provoca uma série de traumatismos psicológicos de alcance inestimável. Além disso, prepara os filhos para a funcionalização mecânica da sociedade criada pelos machos, e as filhas para o animalismo caseiro que permite aos machos continuarem a reger o mundo.
Isolamento, subúrbios, prevenção da comunidade – A nossa sociedade não é uma comunidade. É simplesmente uma série de unidades familiares isoladas. O homem teme continuamente perder a sua mulher, e, com isso, a própria categoria social: por isso tende cada vez mais a isolá-la no campo, campo que tornou o mais aprazível que pôde e a que pôs o nome de "subúrbios".
Conformismo – O homem, embora apregoe que deseja ser um indivíduo, tem um medo extremo de se mostrar diferente dos outros homens em cada uma das suas atividades: social, sexual, intelectual. Disso é prova a sua confraternização, o seu espírito competitivo nas relações sexuais, a sua perplexidade perante os desvios psicofísicos.
Autoridade e governo – Não existe razão no mundo pela qual uma sociedade composta de seres racionais e capazes de comunicarem uns com os outros deva ter um governo, leis, chefes políticos e religiosos, técnicos. Mas o macho recorreu a este aparelho a fim de fugir à sua natural tendência para se fazer orientar e proteger pela mãe, pela mulher.
Filosofia, religião, moral – Dado que a felicidade é impossível na Terra, o homem inventou o paraíso. A sua incapacidade para estabelecer verdadeiros laços de fraternidade torna a sua vida absurda e destituída de significado, pelo que inventou os sistemas filosóficos e as leis morais com um único objetivo: o de se libertar desse vácuo.
Preconceito (racial, étnico, religioso, etc.) – O macho precisa de bodes expiatórios sobre os quais possa projetar suas falhas e inadequações e sobre os quais possa descarregar sua frustração por não ser fêmea. E as várias discriminações têm a vantagem prática de aumentar substancialmente a quantidade de vaginas disponíveis para os homens no topo.
Competição, prestígio, status, educação formal, ignorância, classes sociais e econômicas – Tendo um desejo obsessivo de ser admirado pelas mulheres, mas não tendo nenhum valor inerente, o homem constrói uma sociedade altamente artificial que o possibilita apropriar-se de uma aparência de valor através do dinheiro, prestígio, "alta" classe social, diplomas, posição profissional e conhecimento e, derrubando profissionalmente, socialmente, economicamente, e educacionalmente tantos outros homens quanto possível.
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O fim da educação universitária não é o de fornecer uma bagagem cultural aos nossos jovens, mas sim o de excluir o máximo número possível desses jovens das várias profissões.
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Nenhuma revolução verdadeira poderá nunca ser feita pelos homens, porque os que estão no Poder querem conservar as coisas como estão, e os que estão afastados do Poder querem simplesmente alcançá-lo. O rebelde masculino é uma farsa: esta sociedade é sua, pertence-lhe, fê-la ele para satisfação dos seus desejos. Mas ele não pode sentir-se satisfeito, porque não é capaz disso. No fim de contas, o macho que se rebela, rebela-se sempre contra a mesma coisa: contra o seu ser masculino.
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O amor não pode florescer numa sociedade baseada no dinheiro e no trabalho sem sentido; pelo contrário, para que o amor floresça exige-se liberdade econômica e pessoal, tempo disponível, oportunidade de nos deixarmos envolver em atividades emotivamente satisfatórias, que, uma vez partilhadas entre pessoas que se respeitam, podem conduzir a uma amizade profunda. Mas a sociedade não fornece, praticamente, nenhuma oportunidade desse gênero.
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O sexo é o refúgio dos estúpidos. Quanto mais privada de aparelho mental for a mulher, quanto mais integrada estiver na "cultura" masculina, por outras palavras, quanto mais graciosa for, mais sensual é. As mulheres mais graciosas da nossa "sociedade" são maníacas sexuais.
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O sexo não é parte de um relacionamento; pelo contrário, é uma experiência solitária, não-criativa, uma grande perda de tempo. A fêmea pode facilmente – mais facilmente do que ela pode imaginar – afastar seu impulso sexual, deixando-se completamente tranqüila e cerebral e livre para perseguir atividades e relacionamentos verdadeiramente valiosos; mas o macho, que parece gostar sexualmente das mulheres e que procura excitá-las constantemente, estimula a fêmea altamente-sexual a frenesis de luxúria, atirando-a num abismo de sexo do qual poucas mulheres escapam. O macho lascivo excitou a fêmea sensual; ele precisa fazê-lo – quando a mulher transcende seu corpo, eleva-se acima do animalismo, o homem, cujo ego constitui-se de seu pênis, desaparecerá.
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Muitas mulheres, mesmo assumindo a completa igualdade econômica entre os sexos, prefeririam viver com homens ou mascatear suas bundas na rua para ter a maior parte do seu tempo para si próprias, em vez de perder muitas horas dos seus dias fazendo trabalhos tediosos, embrutecedores, não-criativos para alguma outra pessoa, funcionando como máquinas, ou na melhor das hipóteses – se forem capazes de conseguir um "bom" emprego – co-administrando o monte de merda. Portanto, o que vai libertar as mulheres do controle masculino é a total eliminação do sistema dinheiro-trabalho, não a obtenção de igualdade econômica com os homens dentro desse sistema.
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Depois da eliminação do dinheiro não haverá mais necessidade de matar os homens; eles serão despojados do único poder que têm sobre as mulheres psicologicamente independentes. Uma vez que os homens sejam afastados do poder, nós estaremos livres para progredir com o trabalho de curar o mundo. Todos os trabalhos sem sentido serão automatizados, deixando as mulheres livres para fazer coisas como achar curas para todas as doenças. Bebês serão produzidos em laboratórios, porque nenhuma mulher, uma vez libertada, vai querer ser uma "égua reprodutora".
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Por que há de haver gerações futuras? Com que finalidade? Quando tivermos eliminado o envelhecimento e a morte, por que havemos de continuar a reproduzir-nos? Que importância tem o que possa acontecer depois da nossa morte? Por que deveríamos nos importar que não haverá geração mais jovem para suceder-nos?
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